
Em entrevista ao iGay, cartunista transexual descarta fazer cirurgia de mudança de sexo, mas revela que fará implante de seios. Descobrir-se gay na juventude a deixou em pânico
Não dá para tirar os olhos de Laerte Coutinho.
 De gestos delicados, articulada e lúcida em seu pensamento, a 
cartunista de 62 anos prende a atenção quando fala. Na conversa com a 
reportagem do iGay, ela não usa um figurino muito 
diferente de outras senhoras de sua faixa etária. Laerte chega para 
entrevista usando maquiagem discreta, saia na altura dos joelhos, camisa
 regata branca, bolsa de pano e um inseparável leque – que ajuda a 
refrescar o calorão do escaldante verão paulistano.
Conhecida
 até 2004 apenas pelo seu trabalho como um dos mais importantes 
cartunistas do País, Laerte colocou naquele ano o assunto 
transexualidade na pauta brasileira ao assumir sua identidade feminina. 
Hoje, ela reconhece que deveria ter tomado esta decisão antes. “Gostaria
 de não ter renegado minha homossexualidade por 40 anos”, admite.
"Eu não quero ser a 
Shakira... Mas posso dizer que se fosse para escolher alguém eu queria 
ser a Maria Rita Kehl, ela é belíssima, inteligente", justifica Laerte.
Na
 entrevista, Laerte também fala de momentos difíceis de sua vida, como a
 morte do filho num acidente de carro, em 2005, aos 22 anos. “Ele morreu
 e eu entrei em um parafuso interdisciplinar por assim dizer. Um 
processo de crise com muitas pontas que me fez ir atrás de uma análise”.
Veja a seguir os principais trechos da conversa da cartunista Laerte com o iGay.
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 Talvez eu seja o oposto de uma travesti que envelheceu. Eu sou uma velha que entravecou
iG: Você foi uma das pessoas que mais se 
destacaram neste um ano de iGay, não só por seu ativismo, mas também por
 sua experiência pessoal. Como você avalia esse período?Laerte Coutinho:
 Olha, minha memoria é uma porcaria e eu conto o ano a partir de junho, o
 mês do meu nascimento. Agora, independente do calendário gregoriano, 
posso dizer que nós vivemos uma época tensa e que esta tensão é 
representada pelo conflito entre os avanços e a força de reação a eles, 
com um conservadorismo avançando e crescendo em cima da erosão de 
direitos conquistados.
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 Vejo os LGBTs como pessoas que lutam pelo gozo do direito de todos... Quem parcializa é o conservadorismo
iG: Como você percebe o embate do movimento LGBT contra o conservadorismo?Laerte:
 Não gosto de ver o movimento LGBT como um nicho ou parcela. Vejo os 
LGBTs como pessoas que lutam pelo gozo do direito de todos, justamente 
contra um conservadorismo que quer excluir esse direito de uma parcela 
da população. Quem parcializa é o conservadorismo. Apesar de vivermos um
 momento de tensão, também vivemos um momento muito decisivo. Pelo que 
eu conheço do Brasil, onde as coisas são conquistadas para logo em 
seguida serem desconquistadas (sic), é importante ver as manifestações 
populares, essa autodescoberta, que acontece principalmente no movimento
 LGBT, que está muito melhor articulado. Com o tempo, o conceito de 
homossexualidade vai cair. Porque vai deixar de ser uma relação 
estigmatizada. Quando a sociedade passar a compreender todas as 
possibilidades envolvidas nos relacionamentos, vai parar de querer 
classificá-los segundo um padrão de normalidade.
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 Com o tempo, o conceito de homossexualidade vai cair. Porque vai deixar de ser uma relação estigmatizada.
iG: Sua experiência como transexual colocou a 
transgeneralidade em pauta no País. Como foi lidar publicamente com um 
tema tão delicado?Laerte: Até onde eu 
entendo, foi pela aceitação da minha orientação sexual. Sempre fui gay, 
comecei minha vida sexual como gay, mas entrei em pânico e bani isso pra
 baixo do tapete. Só depois de muito tempo me entendi como uma pessoa 
bissexual. Foi transformador aceitar viver o inesperado, isso me levou a
 transgeneralidade. Fui fazendo coisas e respondendo a determinados 
estímulos e convites. Hoje até me questiono: eu teria conseguido se não 
tivesse a idade que tenho, se não tivesse com a vida profissional 
resolvida e se ainda tivesse filho pequeno em casa? Não posso ficar 
construindo passados hipotéticos, mas eu gostaria de não ter renegado 
minha homossexualidade por 40 anos, acho que teria sido mais saudável 
para mim e para as pessoas com as quais me relacionei.
 
Laerte: "Me considero uma transexual, muito 
provavelmente bissexual. Mas isso deixou de ser uma preocupação, eu sei 
mais ou menos o que está valendo para mim"
iG: Por que a sua figura ainda gera tanta repercussão dez anos depois de você se assumir?Laerte:
 Acho que toquei num nervo social muito importante, a liberdade. 
Liberdade social e de orientação de gênero, que são coisas muito caras e
 relativamente recentes. Existe um passado de estigma. Vivemos um 
momento em que a homossexualidade não é considerada um crime, mas ao 
mesmo tempo é vista como pecado e doença. O fato de eu ter resolvido 
assumir deu uma ideia das possibilidades, principalmente a de que nunca é
 tarde para se assumir. Esse é um aspecto muito legal.
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 Sempre fui gay, comecei minha vida sexual como gay, mas entrei em pânico e bani isso pra baixo do tapete
iG: Quando a transgeneralidade se tornou uma realidade em sua vida?Laerte:
 Em 2004, conheci pessoas por conta de uma tirinha que publiquei do 
Hugo, na qual ele se travestia. Isso chamou atenção das pessoas do 
circuito crossdresser, mas demoraram uns cinco anos até eu decidir que 
queria isso.
iG: Você recorreu à terapia psicológica durante esse processo?Laerte:
 Eu busquei a análise, até por conta da morte do meu filho. Comecei a me
 entender como transgênero em 2004, no ano seguinte ele morreu. Aí 
entrei em um parafuso interdisciplinar, por assim dizer. Um processo de 
crise com muitas pontas. Já tinha feito muita terapia na vida, mas 
percebi que precisava de um mergulho mais assertivo, algo mais a foder, 
como dizem os gaúchos. Fiz por dois anos e foi muito bom para me fazer 
pensar bastante, não só sobre a sexualidade, mas também sobre questão de
 gênero.
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 Vejo que boa parte da minha agressividade na época era 
fundamentada pelo medo, pelo terror de ser uma bicha ou um invertido, 
como se falava na época
iG: A terapia te libertou dos seus próprios preconceitos?Laerte:
 Tive uma relação complicada com a sexualidade, em especial na minha 
infância e adolescência. Tinha uma homofobia, algo inconsciente. 
Analisando o meu caso pessoal, vejo que boa parte da minha agressividade
 na época era fundamentada pelo medo, pelo terror de ser uma bicha ou um
 invertido, como se falava na época. A população LGBT é historicamente 
um segmento visto como maldito, representando perversão e decadência. 
Internalizei essas ideias, era assim que me eu via. O pensamento fóbico 
une tudo isso ao ponto de vista machista de que ser gay é ser 
mulherzinha.
"Tive uma relação complicada com a sexualidade, em especial na minha infância e adolescência"
iG: Hoje, após todo esse processo de aceitação, como você se define?Laerte:
 Me considero uma transexual, muito provavelmente bissexual. Mas isso 
deixou de ser uma preocupação, eu sei mais ou menos o que está valendo 
para mim. É compreensão plena do que eu estou vivendo. Muitas pessoas 
trans estão vivendo isso. As questões que envolvem a transgeneralidade 
vão desde mudança da genitália até relação com os familiares, comunidade
 e emprego.
iG: Falando nisso, existe em você a vontade de fazer resedesignação  genital, a chamada cirurgia de mudança de sexo?Laerte:
 Minha pouca vontade em fazer uma cirurgia deste tipo começa pela 
dificuldade, não é um processo fácil como colocar peito. Tenho pensado 
muito sobre mudanças no meu corpo e passei a cogitar a fazer implante de
 seios. Entendi e gostei da ideia, primeiro porque é simples, segundo 
porque resolve simbolicamente muita coisa. É muito forte essa coisa de 
seios, como algo da mulher. Embora eu sempre me questione se sou homem 
ou se sou mulher, eu gosto de ser mulher.
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 Mexer com a genitália é de uma complexidade que teria que ser uma solução muito boa para me convencer
iG: A sua ideia então é parar na cirurgia de implante de seios?Laerte:
 Mexer com a genitália é de uma complexidade que teria que ser uma 
solução muito boa para me convencer. Porém, tem outras possibilidades, 
como a orquiectomia, por exemplo, que é a retirada do escroto. Ela 
resolve o problema da testosterona, mas estranhamente você precisa fazer
 uma inserção de testosterona por conta da osteoporose. Sempre olho o 
catálogo (rindo). Assim como eu olho também o catálogo da hormonização 
(inserção de hormônios femininos).
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 Por algum motivo, estou compreendendo a situação de estar sozinha não só como algo possível, como legal
iG: Como está a sua vida afetiva, você está namorando?Laerte:
 Eu terminei um namoro longo no começo do ano passado e não estou 
buscando casamento e nem relacionamentos permanentes. Mas não estou 
fechada para isso, estou tocando minha vidinha. Na minha historia 
particular, estar sozinho - e falo no masculino porque me refiro aos 
anos anteriores - me dava pânico, eu terminava um relacionamento e 
buscava outro avidamente. Por algum motivo, estou compreendendo a 
situação de estar sozinha não só como algo possível, como legal.
FONTE:IGAY 
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