Em vídeo, homossexual reage a
uma difamação homofóbica e agride o opressor; alguns disseram ser triste a
violência como resposta… Mas quem, de fato, cometeu um ato de violência?
Por Marcelo Hailer
O que é violência? Violência, palavra derivada
do latim “violentia”, que significa “veemência, impetuosidade”. Também está
relacionada ao termo “violação”, de violare.
Na maioria dos meios de comunicação e em
setores sociais, o simbolismo da violência é tratado de forma generalizada.
Costuma-se classificar como violência tudo aquilo que perturba uma aparente
ordem de paz (ainda que o conceito de paz possa ser também problematizado),
tais como: atentados de grupos armados, destruição de patrimônios públicos e
privados, manifestações políticas (à esquerda) e agressões em geral.
Porém, é necessário que problematizemos a
questão de violência e suas circunstâncias. Faz-se necessário que a arranquemos
da narrativa colonizadora da mídia hegemônica e de outros meios que incidem
diretamente na opinião pública. Descolonizar a violência é desconstruí-la e
encontrar no meio de seus destroços o que é de fato violência, quem a pratica e
o que é a reação. Por exemplo, diariamente mulheres são aviltadas por homens,
seja no espaço privado ou no público (transporte, por exemplo). Quando uma
mulher reage, tal fato é tratado com alarde e como algo “violento”. Mas, como
bem frisou Malcom X, é necessário “não confundir a reação do oprimido com a
violência do opressor”.
O oprimido tem identidade, classe, cor, gênero
e orientação sexual. Especificamente, podemos entender enquanto classe de
oprimidos os/as negros/as, mulheres, bichas, lésbicas, drogados, transexuais,
indígenas, imigrantes em condições de clandestinidade e outros marginalizados.
Estes grupos vivem toda a sorte de violência por parte de um sistema/Estado que
está organizado para normatizar, classificar e homogeneizar as experiências. A
partir do momento em que estes corpos se tornam dissidências das regras
sociais, passam a viver cotidianamente a violência perpetrada pelos códigos
padronizadores. As violências são inúmeras: desde a exclusão dos espaços
sociais até mesmo a eliminação. Estes corpos, perante o sistema
branco-ocidental (que se pressupõe hegemônico/sem fronteiras/colonizador), são
elimináveis.
E onde estaria o agente opressor? De maneira
direta, podemos identificar a opressão no sistema judiciário, que possui a mão
pesada para com os oprimidos; as forças militares que, invariavelmente,
reprimem ações populares e os sujeitos marginalizados; o Estado, quando nega a
existência de algumas identidades e não quando retira direitos e, quando isto
ocorre, sempre atinge o lado mais fraco da corda… Portanto, compreender a
violência opressora é entender que ela é fragmentada, manipuladora e que,
muitas vezes, coopta o oprimido e faz com que este invista opressão contra os
seus parceiros oprimidos.
“Viado não é bagunça”
Circula
pela rede um vídeo em
que um homem homossexual reage a uma difamação homofóbica com socos e chutes
contra o seu agressor, que vai ao chão. Muita gente aplaudiu e outras
reprovaram. De um lado, reconhecia-se o fato de que sujeitos sexodiversos
cansaram de serem humilhados em silêncio e que estariam reagindo; do outro
lado, de que se tratava de um fato triste: uma opressão sendo respondida com
violência. Eis aqui o X da questão: quem, de fato, pratica violência?
A reação da bicha deve ser entendida como uma
reação frente a uma gama de opressões que LGBT, mulheres, negros, índios e
outros marginalizados sofrem ao longo dos séculos diante de um silêncio
complacente de boa parte da sociedade e da classe política. Afirmar que se
trata de “violência” a reação de um sujeito frente a uma agressão que ocorre
por décadas é reforçar/reafirmar toda a estrutura da violência opressora. Os
sujeitos marginalizados são sistematicamente violentados e, no limite, se
organizam e vão às ruas protestar; quando um sujeito, sozinho, reage, ele não está
cometendo violência, ele está reagindo uma violação que o persegue, e não
apenas a ele, mas a seus amigos e, consequentemente, familiares.
O
discurso “pacifista” quase sempre surge quando o oprimido reage. Esta
observação é feita pertinentemente por Fanon em Os Condenados da Terra ao tratar da intelectualidade
colonizada e da possibilidade de diálogo entre colono e colonizado quando este
resolve se levantar contra o sistema de poder imposto pela colonização. O
intelectual colonizado e o colono logo se aproximam do oprimido revoltado para
lhe dizer que não é assim que as coisas devem ser, que devem conversar, ter
calma e que tudo ficará melhor. Esta sistemática se repete com os
marginalizados quando se rebelam em nossa contemporaneidade.
Em outro momento, Fanon afirma que, quando o
colonizador se dá conta de que não poderá mais controlar a revolta, ele se
utiliza do “terreno da cultura, dos valores, das técnicas” para manter o seu
poder. E o que significa a retomada do Estatuto da Família, que apenas reconhece
a família normativa, senão um chamado pelos valores frente ao avanço do
movimento LGBT? E as campanhas contra o aborto, senão uma convocação para a
criminalização do corpo da mulher? Sempre que a rebelião se fortalece, fala-se
na “dignidade humana” e na “paz”, mas, bem sabemos que estes dois valores têm
endereço: na heteronormatividade classe-média e nos setores detentores de
poder, que sentem seus privilégios e dominação ameaçados quando a bicha e
outros marginalizados reagem.
Quando a bicha nocauteia o seu opressor e lhe
diz com todas as letras que “viado não é bagunça” e que ele não veio a este
mundo “para ser tirado”, no momento do fato, ele pode estar “sozinho”, mas a
sua atitude pode ser interpretada simbolicamente como os passos necessários
para a transformação do social, pois, e novamente nos apoiamos em Fanon, a
prática dos crimes de ódio por identidade de gênero e orientação sexual
acontece há tanto tempo que foram naturalizadas e, consequentemente, o oprimido
passou a apanhar em silêncio, visto que a dominação sistêmica o programou para
pensar desta forma. Quando o sujeito reage a séculos de dominação, ele está
reagindo contra toda uma estrutura de violência que sempre, direta ou
indiretamente, lhe informou que não deveria reagir, mas sim permanecer em
silêncio e manter a ordem das coisas.
Fonte: Portal Fórum
Fonte: Portal Fórum
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