segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Campo Grande foi o lugar que ela encontrou para lutar contra o preconceito

“Foi aqui onde fiz todos os meus documentos, adotei como minha cidade natal. Minha vida aconteceu aqui, então, me considero cidadã campo-grandense”. (Foto: Samira Ayub)
“Foi aqui onde fiz todos os meus documentos, adotei como minha cidade natal. Minha vida aconteceu aqui, então, me considero cidadã campo-grandense”. (Foto: Samira Ayub)
Campo Grande, em seus 116 anos, tem sido uma mãe gentil com seus filhos da terra. Acolhedora por vocação, tem abrigado em seu peito filhos de terras distantes que vieram para a Cidade Morena e ajudaram a construir capítulos relevantes em sua história. Como a vida da travesti Cris Stefanny, 35, que veio da Paraíba ainda menina e rompeu o silêncio denunciando a violência contra prostitutas, travestis e homossexuais e transformou a vida na luta em defesa dos direitos LGBT.
Dona de um sorriso constante, Cris tem no olhar o brilho de quem é apaixonado pela vida. De voz mansa e fala pausada, de cabelos longos e cacheados, ela é uma travesti discreta, elegante e determinada. A imagem que ela transmite é de uma pessoa vencedora. E, de fato, Cris venceu o preconceito por ser negra, pobre, nordestina e travesti.
 “Eu sempre tive aquela coisa de combater a injustiça, de não concordar com tudo e questionar tudo". (Foto: Samira Ayub)
“Eu sempre tive aquela coisa de combater a injustiça, de não concordar com tudo e questionar tudo”. (Foto: Samira Ayub)
Cris nasceu em 1979 na cidade de Jacaraú (PB), na divisa com o Rio Grande do Norte. Aos 12 anos aceitou o convite de uma tia para morar em Campo Grande, no então Mato Grosso. “Eu lembro que quando vim pra cá, recebi muitos conselhos para ter cuidado por causa dos jacarés, das onças que andavam no meio da rua”, contou. Apesar das boas recordações da infância e das paisagens encantadoras, para ela, Campo Grande é sua cidade natal. “Foi aqui onde fiz todos os meus documentos, adotei como minha cidade natal. Minha vida aconteceu aqui, então, me considero cidadã campo-grandense”, afirmou.
Sem jacarés ou onças pelas ruas, Cris se encantou pela cidade que a acolheu tão bem e que pouco tempo depois recebeu seus pais. “Passou um tempo, meus pais vieram, minha mãe ficou cinco anos, mas não se adaptou justamente por causa do frio. Não gosto do frio, é o único momento que me dá vontade de ir embora”, diverte-se. “Mas, eu me acostumei e tenho raízes aqui”, ressaltou.
Com a tia, Cris morou por pouco tempo. “Fui procurar viver minha vida. Com 17 anos eu já morava sozinha e tinha minha vida independente. Morei em muitos quitinetes de um quarto só e trabalhava em uma floricultura onde fiquei por cinco anos”, contou. No emprego, ela entrou como auxiliar de serviços gerais até se tornar vendedora. “Veio também uma época ruim. Logo quando assumi minha identidade de gênero, como pessoa trans, aos 17, 18 anos, vieram algumas pressões no serviço, mas fiquei lá até aos 21 anos. Até que acabei saindo”, contou.
Sentindo na pele toda a desigualdade e violência que existiam contra travestis, Cris decidiu lutar. (Foto: Samira Ayub)
Sentindo na pele toda a desigualdade e violência que existiam contra travestis, Cris decidiu lutar. (Foto: Samira Ayub)
Sem emprego, Cris começou a procurar outras colocações, porém, sem sucesso. “Fiquei um tempo recebendo o seguro-desemprego, procurei, mas não consegui outro trabalho, e aí, fui me prostituir”, disse. Cris viveu na prostituição por dez anos.
Na dureza do cotidiano de prostituta, Cris se deparou com uma realidade cruel em Campo Grande. Cansada de lidar com o preconceito, a violência e os abusos sexuais contra as travestis, decidiu percorrer outro caminho: o da militância pelos direitos LGBT. E nesse segmento passou a ser conhecida na cidade. “Eu sempre tive aquela coisa de combater a injustiça, de não concordar com tudo e questionar tudo. As pessoas me chamavam de briguenta. Nasci em uma igreja evangélica, fui líder de mocidade e sempre estava à frente de alguma coisa”, disse. “Quando assumi minha identidade de gênero, quando passei a não me ver como uma pessoa homossexual, mas como uma transexual, a não me sentir bem no corpo masculino, fui tomando hormônios, até mesmo de forma clandestina”, afirmou.
Hoje, Cris busca junto ao Estado e ao município a criação de um ambulatório para o processo de transexualização, por meio de portarias do Ministério de Saúde. “Antes, nem se discutia essas pautas. Estamos falando de 20 anos atrás. Demos um salto muito grande nos últimos cinco anos”, observou. “Embora ainda tenha muita violência, muito preconceito e assassinatos, hoje, o mercado de trabalho está preparado para empregar uma pessoa travesti. Conseguimos avançar e colocar a pauta dentro da saúde, da Secretaria da Mulher sobre o respeito à identidade de gênero”, disse.
A Cris de 20 anos atrás teve que driblar até mesmo o preconceito entre as outras travestis. “Quando comecei a militância, nem mesmo as travestis acreditavam que iria dar certo. Elas falavam: ‘você está louca, volta pra sua terra comer calango, a Polícia vai te matar’. E de fato, sofri muitas ameaças, mexi em feridas e egos de pessoas que eram, até então, consideradas intocáveis”, contou.
Cris Stefanny começou a observar que havia um jornal em Campo Grande que trazia, em sua grande maioria, matérias policiais. Mas, algo chamou a atenção da nordestina, a frequência com que eram estampados na capa do jornal os assassinatos de travestis. “Era comum ver quase todos os dias, na capa, uma travesti assassinada, fuzilada, e sempre com termos pejorativos, com muita discriminação”, disse.
Início da luta
Ao mesmo tempo, Cris começou a se incomodar com a violência praticada contra travestis e prostitutas. “Antigamente, existia a Deops (Delegacia Especializada de Ordem Pública e Social), e naquela época, alguns policiais faziam o chamado arrastão, na quarta e sexta-feira. Pegavam travestis, prostitutas, mendigos, quem achassem pela rua, e levavam para as delegacias onde faziam a gente lavar camburão, lavar celas. Quando não havia abusos sexuais, espancamentos, e algumas eram levadas para as rodovias”, contou.
Durante o primeiro mandado da gestão do ex-governador Zeca do PT, Cris fez as primeiras denúncias. “Eu fui bastante massacrada por isso, por ter denunciado. Fiquei dias em casa, recebendo apoio do Governo, porque não aceitei ficar no serviço de proteção à testemunha. Fiquei no isolamento por sete meses, sendo vigiada pela polícia, não por aqueles que denunciei, porque sofri muitas ameaças”, disse. Cris deu o primeiro passo para a inclusão dos direitos LGBT serem discutidos nas esferas do Poder Público.
Em janeiro de 2001 montou a ATMS (Associação de Travestis de Mato Grosso do Sul) e a luta prosseguiu. “Conseguimos fazer a inserção das pessoas travestis nas ações sociais do Governo, como Vale Renda, Bolsa Família, Cursinho Popular, e de lá para cá, tem avançado o diálogo. Já não se fala mais em políticas públicas sem incluir a pauta LBGT”, afirmou.
“Hoje, conseguimos várias leis, como a identidade de gênero, o respeito ao nome social, o pagamento de benefícios para parceiros de travestis, a realização das Paradas da Diversidade” pontuou. Para ela, as paradas foram fundamentais para dar visibilidade à causa e para quebrar preconceitos. “Antes, as travestis que saíam de dia nas ruas eram motivos de chacotas, hoje, não mais. As lojas sabem do potencial de gasto, e tratam com respeito. Temos o mercado de trabalho absorvendo melhor essa mão de obra”, ressaltou.
Participação política
Cris, hoje, integra a equipe de trabalho da vereadora Luiza Ribeiro (PPS), e entende que o preconceito ainda existe. “Eu costumo falar que a cura para qualquer fobia passa por duas vertentes: punição e educação. Se houvesse punição mais rigorosa e educação, essas questões, seriam tratadas de forma diferente”, observou.
“Precisamos avançar mais. Hoje, temos em média, 500 travestis associadas, mas o número no Estado é muito maior que esse. O atendimento da Associação é para todas. Um dos avanços que considero mais importante é a inclusão das travestis no mercado de trabalho, hoje temos enfermeiras, atendentes de Call Center, e outras profissões, mas é apenas 1%. A grande maioria ainda vive na prostituição, tem pouca escolaridade. Precisamos avançar, inserir em cursos superiores ou técnicos”, ressaltou, encerrando a entrevista para almoçar as 15h. “Não tive tempo nem de almoçar hoje, porque uma travesti foi assassinada em Dourados, e eu estava conversando com a família. Vou para lá para acompanhar de perto essa questão”, disse.
E, assim a luta continua para ela que resolveu transformar a si mesma e garantir cidadania e acesso a serviços públicos para cidadãos sul-mato-grossenses.
FONTE:OESTADOOLINE

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